quarta-feira, setembro 29, 2010

SOLOS SEM LEI

A ausência de um verdadeiro ordenamento do território em Portugal tem custos elevados para todos nós—mesmo quando disso não nos apercebemos. O solo é recurso esgotável, o seu uso pode ser factor de harmonia social e ambiental; ou pode---como tem sido infelizmente o caso—ser causa de distorções muito graves. Os problemas são vários, têm sido identificados e estudados durante décadas, sem que nada de verdadeiramente decisivo tenha sido feito: espaços urbanos alargados até ao infinito, em mancha de óleo, destruindo o mundo rural e os espaços naturais, incluindo os melhores solos agrícolas do país. Centros históricos das cidades abandonados e a cair de velhice e incúria, despovoando-se em benefício dos novos subúrbios. Especulação do preço dos solos em detrimento dos cidadãos e aumentando uma malha sinistra e letal de corrupção e compadrio. Um país desarrumado, ao sabor de interesses devoradores e inconfessáveis, capturado o «interesse público» por grupos privados pouco escrupulosos. É neste contexto de caos e de indefinição que surge a notícia: o Ministério do Ambiente diz que vai «colocar em debate público, neste mês de Setembro, uma proposta para alterar a Lei dos Solos», que tem 33 anos e, digo eu, permite todos os desvarios.
A ministra Dulce Pássaro—que vinha primando pelo silêncio em relação a praticamente todas as matérias a seu cargo-- defendeu, a necessidade de a lei “ser actualizada face às evoluções verificadas”, acrescentafdo que «o novo diploma “deverá garantir a salvaguarda das funções ambientais, ecológicas e produtivas do solo”, mas também “conter a expansão urbana e a urbanização desordenadas, e promover a reabilitação e a revitalização urbanas”
Sem anunciar, o que se estranha, que propostas concretas tem o governo para apresentar como ponto de partida do debate, a ministra lá foi revelando que «também se pretende a justa distribuição das mais-valias resultantes quer das decisões de planeamento territorial quer da realização de obras públicas” evitando “a retenção dos solos com fins especulativos”.

Perderam-se muitos anos e a inacção tornou o país mais feio, descaracterizado, mais pobre em recursos naturais e paisagem, tendo ainda de suportar o financiamento das infra-estruturas de uma expansão urbana que nada justifica, a não ser a especulação pura.
O próprio Estado acabou sendo um agente indutor de especulação em torno da «desanexação» de áreas protegidas e reserva agrícola, como se vê nos projectos PIN, que tornam possível a construção intensiva em zonas sensíveis de protecção da natureza!
As autarquias insistem no absurdo aumento das «áreas urbanizáveis», em parte porque são dependentes do dinheiro que lhes dá a construção nova.
Desde há muito que se reclama a urgência de impedir os lucros fabulosos que se produzem com a simples passagem de um terreno de «rústico» para «urbano». Um mero risco no mapa, uma estrada que se constrói, e o que pouco valia, transforma-se na «galinha dos ovos de ouro»! A solução só pode ser a tributação pesada das mais-valias criadas, como sucede em quase toda a Europa, travando a especulação…e os «negócios» suspeitos.
Resta saber se o debate público, numa matéria que afecta interesses poderosos e influentes, ajudará a elaborar uma boa Lei dos Solos. Mais vale tarde do que nunca, mas quer-me parecer que ainda vai correr muita tinta sobre este assunto…e que as rotinas instaladas e os grupos de pressão do costume farão valer a sua força. Remédio contra isso é estarmos atentos. Nesta matéria tão sensível, apenas a cidadania activa poderá fazer pender a balança para o lado do interesse público!

Bernardino Guimarães
( Crónica publicada no Jornal de Notícias em 28/9/2010




segunda-feira, setembro 27, 2010

PONTOS DE FUGA

                                           Henri Matisse, La Danse

POEMA DO FUTURO

Conscientemente escrevo e, consciente,
medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exhumado
da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou.
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares.
Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
é tudo quanto fica,
é tudo quanto resta
de um ser que entre outros seres
vagueou sobre a Terra.

                             António Gedeão, in 'Poemas Póstumos'

ESPERANÇAS DE PORTUGAL

Eu, Portugal, (com quem só falo agora) nem espero o teu agradecimento, nem temo a tua ingratidão. Porque, se me não contas com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos; se nas letras que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a má fortuna sem receio, assim como te digo a boa sem lisonja. Mas é tal a tua estrela (benignidade de Deus contigo deverá ser), que tudo o que leio de ti são grandezas, tudo que descubro melhoras, tudo o que alcanço felicidades. Isto é o que deves esperar, e isto o que te espera; por isso em nome segundo e mais declarado chamo a esta mesma escritura Esperanças de Portugal, e este é o comento breve de toda a História do Futuro.


Mas vejo que o mesmo nome de Esperanças de Portugal lhe poderá com razão suspender o gosto, assustar o desejo e embaraçar os mesmos alvoroços em que o tenho metido com estas esperanças: Spes qae differtur, affligit animam, disse a Verdade divina e o sabe e sente bem a experiência e paciência humana: ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada a esperança, é um tormento desesperado o esperar.

(...)

Assim como há esperanças que tardam, há esperanças que vem. As esperanças que vem são o pomo da árvore da vida: Lignum vitae desiderium veniens. A virtude maravilhosa daquele pomo era reparar e acrescentar a vida e remoçar aos que o comiam. As esperanças que tardam, tiram a vida; as esperanças que vem, não só não tiram a vida, mas acrescentam os dias e os alentos dela: Spes quae differtur, affligit animam. Lignurn vitae, desiderium veniens.


Que vida haverá em Portugal tão cansada, que idade tão decrépita, que à vista do cumprimento destas esperanças, não torne atrás os anos para lograr tanto bem? Vivei, vivei, Portugueses, vós os que mereceis viver neste venturoso século! Esperai no Autor de tão estranhas promessas, que quem vos deu as esperanças, vos mostrará o cumprimento delas.

                Padre António Vieira ( História do Futuro)

PONTOS DE FUGA

                                                            John Audubon, Flamingo

sexta-feira, setembro 24, 2010

MOBILIDADE

A Semana da Mobilidade terminou ontem. Evento internacional com expressão nas cidades portuguesas, destina-se a chamar a atenção para a necessidade de encontrar soluções equilibradas quanto ao direito a deslocarmo-nos, incluindo a reflexão sobre o problema do automóvel. Sim, porque o automóvel, esse símbolo do progresso e da autonomia individual, como tal tido ao longo de muitas décadas, tornou-se parte do problema. Hoje o que se discute é a forma, ou as formas, de salvar as cidades do domínio do automóvel. Muitas cidades e aglomerações metropolitanas na Europa e um pouco por todo o mundo, discutem e põem em prática planos de promoção dos transportes públicos, com os correspondentes investimentos, e procuram incentivar o cidadão a usar a bicicleta e também os próprios pés, sempre que possível, em nome do bem estar das cidades e da saúde das pessoas.
Em Portugal parece que custa chegar a esse patamar de consciência, a essa esfera de acção. Por via da nossa pobreza, descobrimos tarde e mal o gosto pelo automóvel, e talvez por isso ainda associamos o transporte individual ao conforto, à liberdade pessoal e até ao prestígio social. Enquanto os homens de negócios e os políticos de muitos países europeus se deslocam diariamente de bicicleta, de autocarro ou a pé, por cá ainda parece bem exibir o carro como símbolo de riqueza e de posição. Deve ser, em parte, por causa disso que as cidades se enchem de automóveis, asfixiando-se numa selva de buzinas e de fumo, sem espaço para nada, para as pessoas, para o passeio, para uma vida saudável e convivial. Deve ser por isso, também, que centenas de pequenos e grandes responsáveis políticos eleitos—desde os vereadores dos municípios aos ministros do poder central-- se locomovem a bordo de belos carros pretos, despesismo exibicionista e inútil que todos aceitamos como normal—mas que faz parte de uma quotidiana e amarga liturgia de sagração do poder. Muito pouco democrático, na realidade. E péssimo exemplo!
Claro que o combate ao excesso de automóveis se deverá fazer em nome da qualidade de vida, por cidades onde seja possível e valha a pena viver. Os engarrafamentos são uma monstruosa perda de tempo na vida de cada um; um imenso e chocante desperdício de energia, com a consequente poluição global e local—Lisboa e Porto acusam indíces de contaminação do ar que deveriam preocupar-nos, porque se trata de um problema real de saúde pública.
Não adianta é diabolizar o automóvel e ainda menos os que o utilizam. Para que deixem de o fazer na medida do possível, é essencial que haja alternativas, e que essas alternativas, os diferentes modos de transporte público, sejam coordenadas para que se complementem da maneira mais eficiente e mais racional.
Cabe perguntar o que é feito das Autoridades Metropolitanas de Transportes, prometidas há muitos anos e nunca postas a funcionar, justamente para fazer essa coordenação?
Não há cidades habitáveis e atraentes onde falte mobilidade para todos, sem excepção. O ruído, a sujidade do ar, o clima, a carência de espaço para jardins e ruas pedonais, a infernal trama do trânsito caótico, tudo isso pede respostas claras, discutidas, concretas. Estamos tão longe disso!!
Bernardino Guimarães
( Crónica para Antena 1, em 23/9/2010)

segunda-feira, setembro 20, 2010

PONTOS DE FUGA

                                                         Jonh Everett Millais, Autumn Leaves

OUTONO

De que lado viste chegar
o outono? Por que janela
o deixaste entrar? És tu quem
canta em surdina, ou a luz
espessa das suas folhas?
Em que rio te despes para sonhar?
É comigo que voltas
a ter quinze anos e corres
contra o vento até te perderes
na curva da estrada?
A quem dás a mão e confias
um segredo? Diz-me,
diz-me, para que possa habitar
um a um os meus dias.

                           Eugénio de Andrade

sábado, setembro 18, 2010

SE HOUVESSE DEGRAUS NA TERRA

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.


                                     Herberto Helder

PONTOS DE FUGA

                                                       Henri de Toulouse Loutrec, La Toilette

sexta-feira, setembro 17, 2010

OS AMANTES DE NOVEMBRO

Ruas e ruas dos amantes
Sem um quarto para o amor
Amantes são sempre extravagantes
E ao frio também faz calor


Pobres amantes escorraçados
Dum tempo sem amor nenhum
Coitados tão engalfinhados
Que sendo dois parecem um


De pé imóveis transportados
Como uma estátua erguida num
Jardim votado ao abandono
De amor juncado e de outono.


                                Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

PONTOS DE FUGA

                                 John Willian Watherhouse, La Belle Sans Merci

EVIDÊNCIAS

Parece que um dos mais mediáticos cépticos, ou « negacionista» da tese as alterações climáticas, o dinamarquês Bjorn Lomborg, que durante os últimos anos passou a vida denegrindo os que alertavam para a acção humana como causa do aquecimento global, esse céptico…deixou de o ser! Mudou de ideias e veio agora a terreiro advogar uma acção enérgica no sentido do combate às mudanças climáticas, ou seja, às emissões de dióxido de carbono e de outros gases que provocam o problema. Claro que, para os ambientalistas (e para a maior parte da comunidade científica), Lomborg não tem o mínimo de credibilidade para ser a favor ou contra do que quer que seja, já que o acusam de agir ao sabor de mera vontade de protagonismo, ou até ao serviço de muito poderosas, endinheiradas…e poluentes indústrias mundiais!
De qualquer modo, esta «mudança de campo» pode ser entendida como uma certa forma de rendição, mesmo por parte dos mais cépticos, às evidências de mudança no clima e por via dele, nos ecossistemas e no modo de vida das nações.
Talvez a realidade, disponível para qualquer cidadão nos abundantes noticiários, (e que este Verão foi particularmente impressionante!) se esteja a impor a todos, o que pode ser bom augúrio—temos daqui a poucos meses a cimeira mundial da Cancun, onde se irá tentar relançar o que em Copenhaga foi impossível erguer: um acordo global para a redução das emissões dos chamados «gases de efeito de estufa», para substituir o protocolo de Quioto, que atinge o fim do seu prazo de validade.
Optimismo a mais, tendo em conta a enormidade do problema e a fortaleza dos interesses contrários?
As evidências empíricas e facilmente verificáveis são muitas e todos as vimos correr nas parangonas: 40 graus em Moscovo, a floresta boreal russa ardendo e com ela os campos de trigo da Rússia e da Ucrânia; chuvas fortes e cheias em Agosto na Alemanha e Polónia, com consequências devastadoras; chuvas de monção particularmente abruptas no Paquistão, com milhões de desalojados; seca na América do Norte, no Brasil, em África, etc, etc. Este Verão pode ter sido o mais quente desde que há registos e em Portugal o aumento médio da temperatura nos últimos anos ultrapassou a média de subida europeia e mundial.
Também estudos científicos afiançam que o aquecimento é uma realidade, e que o seria no futuro próximo, mesmo que a emissão de CO2 parasse neste momento.
Daí que, no momento em que os céptico mais céptico, e mais «celebrado», muda de opinião e passa a ser crente ( mesmo que seja por motivos menos nobres) talvez seja altura de levarmos a sério os cientistas. Teremos de nos adaptar a um mundo com clima mais incerto…e fazer já agora, hoje, alguma coisa para evitarmos catástrofe ainda pior nas próximas décadas!
Bernardino Guimarães
( Crónica para Antena 1, em 16/9/2010)

PONTOS DE FUGA

                                                 Edward Hopper, Night Windows

DA REALIDADE

Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.


                                           Miguel Torga, in 'Nihil Sibi'

quarta-feira, setembro 15, 2010

FLAMINGOS E ESPERANÇA


Em Agosto, com a cidade em plena acalmia estival, um grupo de flamingos foi notícia; estas aves esbeltas e róseas escolheram o estuário do Douro para uma curta estadia. Não é comum encontrar os bandos de pernaltas cor de rosa nestas paragens, já que as deambulações de Verão as levam quase sempre para zonas húmidas mais a sul. Para além do relativo ineditismo e da beleza da imagem, esta visita serviu também para ilustrar que a Natureza nos revela, quando menos esperamos, que não está disposta a desistir dos meios urbanos e dos ambientes mais humanizados. A tremenda e lamentável poluição do Douro—demonstrada em estudos recentes—e o cerco, tão visível do betão na envolvente do estuário, não chegam ainda para eliminar a esperança, relembrada sob a forma destas aves, num local que agora será reserva natural e que é um verdadeiro paraíso da biodiversidade na região. Dito isto, os incêndios devastadores afectaram rudemente as áreas que o Estado consagrou como «protegidas». Enquanto o que resta de verde no Grande Porto se esfumava, caindo em cinzas na cidade meia vazia, sabia-se da destruição das áreas mais sensíveis do Gerês—nosso único Parque Nacional—e em vários outros locais insubstituíveis.
Sinal, entre tantos outros, de que o mesmo Estado desinvestiu dramaticamente na conservação da natureza e dos ecossistemas, matando pela penúria e pelo esquecimento quaisquer esforços de protecção e gestão adequada. Erro terrível, que nos últimos anos lamentavelmente se acentuou. Se a ideia é poupar, cortando cegamente no essencial e no que é dever indeclinável do Estado, então mais cedo do que tarde, essa redução de custos revelar-se-á como o maior e mais insensato dos desperdícios.
Por todo o lado, onde se debate o estado do mundo e o futuro da humanidade, procura-se iluminar a noção de « serviços dos ecossistemas», coisas que alguns desprezam ainda, mas que são vitais para a nossa vida: a manutenção do solo fértil, a água, a captação de carbono atmosférico, a paisagem e seu valor económico, cultural e social, a diversidade das espécies em terra e no mar, animais e vegetais, sem os quais está ameaçado o nosso modo de vida, alimentação e mesmo avanço científico.
Preservar a Natureza não é luxo, nem saudosismo, nem arremedo estético e ético para aliviar más-consciências: é um problema de sobrevivência.
As cidades precisam de responder a este repto.
Vale a pena trazer aqui um relatório muito recente da ONU, que deveria ser lido pelos nossos autarcas e outros agentes políticos:
O novo relatório, intitulado «A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade para Políticas Locais e Regionais» elaborado no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), «convida os decisores locais a compreender o valor do seu capital natural assim como dos serviços oferecidos pelos ecossistemas, e dar prioridade ao que diz respeito aos benefícios da natureza em áreas de política local como a gestão urbana, ordenamento territorial e gestão de áreas protegidas».
O relatório destaca a dependência que as cidades têm da natureza, e ilustra como «os serviços dos ecossistemas podem oferecer soluções eficazes para os serviços municipais».
Um documento para reflexão urgente. Até porque, como se diz no texto: «mais da metade da população mundial está nas cidades e já é responsável pelo consumo de 70% de todos os recursos que o homem retira da natureza. Até 2050, com a estimativa de que a população do planeta supere 9,2 biliões, a Terra terá 6 biliões de habitantes--quase 90% da população actual-- vivendo no espaço urbano».
Bernardino Guimarães
( Crónica publicada no Jornal de Notícias em 14/9/2010)

segunda-feira, setembro 13, 2010

PONTOS DE FUGA

                                                            Claude Monet, le bateau atelier

NO MAR PASSA

No mar passa de onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos reconhecem
Quando os encontro e perco de repente.

                
                                       Sophia de Mello Breyner Andresen

ESTÁ TUDO LIGADO


Duas coisas foram constantes neste Verão: os incêndios florestais e a constatação do desgaste e erosão da costa marítima. Num caso o país arde mal o calor aperta e o vento sopra, seco; no outro os cidadãos, mais próximos e atentos às praias, podem ver como, em tantos locais, o mar avançou e a linha da costa encolheu, efeito que não deixará de se agravar durante o Inverno.
Ambos os problemas implicam custos humanos e materiais e ambos preenchem noticiários com sede de acontecimentos que colmatem o vazio estival. Ambos são dramas ambientais que reflectem um território em crise, desorganizado e em processo de degradação.
Claro que se trata de duas coisas diferentes e até distantes, fogos lambendo matas e campos, falésias ruindo ou dunas desaparecendo de vista. A Ecologia, ciência de relacionamento, pode ajudar-nos a ver a «fotografia grande» onde ficam claros, porém, os pontos de ligação entre factos que julgávamos, desatentos, completamente separados. Tudo se relaciona, ou como se diz, «isto está tudo ligado».
A verdade é que os principais dramas que nos assaltam o Verão português fazem parte da mesma doença cujas causas são—diz-nos a Ciência—o desprezo pelas leis mais elementares da natureza, que vamos ignorando alegremente até que as tragédias sucedam para mal de todos.
Relacionar é aqui a palavra-chave. As causas das coisas nem sempre são assim tão misteriosas, assim nos demos ao trabalho de as pensar de forma integrada e global, em vez de sectorial, fragmentada, parcial como costumam fazer os tecnocratas e os governantes.
Por exemplo: os fogos nas matas serão esquecidos, ao cair das primeiras chuvas, à falta de telejornais que deles nos lembrem, mas os seus efeitos podem revelar-se bem rápidos e é mesmo no Outono e Inverno que se manifestam. Assim, derrocadas e deslocamentos de terras, bem como cheias e inundações, não serão em muitos casos alheias aos fogos, porque os cabeços dos montes e as montanhas sem coberto vegetal, permitirão que as chuvas arrastem as terras até aos vales e aos rios, provocando a erosão dos montes ( que ficarão sem solo fértil) e a subida da água ou o deslizar de terras, para os locais mais baixos onde se depositará todo esse entulho.
Mas quem se lembra de relacionar as duas coisas, se não sucedem ao mesmo tempo? É curta a nossa memória, realmente!
Por outro lado, todos podemos verificar que as areias faltam na costa para deter o avanço do mar. Em parte porque se permitem urbanizações no litoral e porque os areeiros continuam a sua tarefa insensata. Mas também porque as barragens, cada vez maiores e mais numerosas, não deixam os sedimentos fluir do interior através dos rios rumo à costa marítima, como sempre sucedeu.
Mas quem vai agora dizer que as barragens têm a ver com a carência de areias na praias?
Bernardino Guimarães
( Crónica na Antena 1, em 7/9/2010)

sábado, setembro 04, 2010

SÃO OS RIOS

Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heraclito o Obscuro.
Somos a água, e não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. A sua visagem
muda na água da mutável imagem,
no vidro que muda como o fogo.
Somos o vão rio determinado,
rumo ao seu mar, pela sombra cercado.
tudo nos diz adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha moeda.
E contudo há algo que queda
e contudo há algo que se queixa.

Jorge Luís Borges ( «Os Conjurados»)

quinta-feira, setembro 02, 2010

PONTOS DE FUGA

              Caspar David Friedrich, Mulher ao sol da manhã

SALA VAZIA

A mobília de mogno perpetua
entre a indecisão do brocado
sua tertúlia de sempre.
Os daguerreótipos
mentem sua falsa proximidade
de tempo detido em um espelho
e se perdem perante nosso exame
como datas inúteis
de esmaecidos aniversários.
Há muito tempo
suas vozes aflitas nos procuram
e agora existem apenas
nas primeiras manhãs de nossa infância.
A luz do dia de hoje
exalta os vidros da janela
ao vir da rua de clamor e vertigem
e confina e apaga a tênue voz
dos antepassados.

                         Jorge Luís Borges

quarta-feira, setembro 01, 2010

RECICLAGEM


A ser verdade que boa parte dos resíduos separados pelos cidadãos do Porto e depositados nos ecopontos, é misturado pelos serviços de limpeza municipais com o lixo indiferenciado, sofrendo o destino comum da incineração—estamos perante um triste exemplo do que não deveria nunca ser feito. Do que não julgaríamos possível.
A reciclagem doméstica de resíduos é uma importante fracção do que deverá ser uma política de tratamento adequado dos chamados « lixos urbanos» reduzindo o monstruoso desperdício de recursos valiosos e a dramática escassez de locais de deposição dos restos do grande festival do consumo.
A falta de oportuna recolha domiciliária dos materiais separados—apenas ensaiada como experiência que infelizmente, não se generalizou—faz da ida ao ecoponto um gesto de voluntarismo cívico, de doação de tempo e de esforço que muitos cidadãos repetem diariamente, desmentindo a tão propalada indiferença geral e apatia. Uma soma colossal de pequenos sacrifícios que em prol do ambiente são realizados, sendo as autarquias beneficiadas financeiramente com o produto desses esforços anónimos que enchem os contentores tricolores. Ainda em muito menos escala do que em alguns países, a reciclagem entrou no vocabulário e na rotina de muitos, e é felizmente crescente a sua expressão.
Mas tudo isso depende, em primeiro lugar, de uma coisa simples: confiança. O gesto de civismo assenta na credibilidade do processo. Cidadãos que separam correctamente e depositam os resíduos nos ecopontos disponíveis, câmara municipal de os recolhe a tempo e horas e os encaminha fielmente para a unidade onde serão processados devidamente.
Se um destes elos se quebra, nada funciona. E como repor a confiança que tenha sido quebrada?
Já de há muito se constata que, pelo menos no Porto—mas o problema deve sentir-se em muitos concelhos—os ecopontos, uma vez cheios, não são esvaziados atempadamente, gerando maus cheiros e a perplexidade dos que a eles ocorrem, carregando sacos de resíduos, por vezes implicando deslocações consideráveis seja qual for o estado do clima. Vítima do seu próprio sucesso, atraiçoada por quem tem obrigação de a promover, eis a reciclagem literalmente nas ruas da amargura.
A simples suspeita de que o destino dos resíduos possa ser o mesmo que o dos lixos amalgamados e indistintos, irá seguramente infligir danos irreversíveis a um processo que seria preciso alargar e incentivar de várias maneiras.
Se é verdade que tal sucede, exige-se explicações e credibilidade para evitar que tal se repita. Sendo falsa a alegação, a Câmara deverá fazer o serviço público de esclarecer a cidade, afastando dúvidas sobre a eficácia e lisura dos seus procedimentos neste caso da reciclagem.
Reciclagem que não é tudo, diga-se de passagem, em matéria de gestão sustentável dos resíduos. A Redução é mesmo mais importante ainda, pois não podemos insistir na loucura do aumento da produção de lixo. E a Reutilização também é importante, sendo que nesse aspecto estamos mesmo a andar para trás!
Seja como for, sem mobilização cívica e esclarecimento público aprofundado nada se fará—e isso exige verdade e transparência como condição primordial!
Tudo isto, que tem a ver com resíduos e a forma como os encaramos e tratamos, se insere, ou deve inserir, no quadro mais vasto de procura de sustentabilidade, de procura de soluções para os problemas ambientais que se acumulam e agravam. Mas pouco se vê nessa sentido, enquanto outras tristezas de Verão se agigantam, para nosso desgosto: fogos florestais devastadores, abandono de animais, mortandade nas estradas. Mas isso são outros contos, outras crónicas!
Bernardino Guimarães
( Crónica publicada no JN, 31/8/010)